Jaguar, mestre da sátira brasileira, morre aos 93 no Rio; traço que atravessou ditadura e democracia

Jaguar, mestre da sátira brasileira, morre aos 93 no Rio; traço que atravessou ditadura e democracia

ago, 25 2025

Um traço que virou consciência pública

Nascer em 29 de fevereiro já é um começo improvável. Transformar política em desenho, sem cerimônia e com graça ferina, foi a obra de Jaguar. O cartunista morreu no domingo, 24 de agosto de 2025, no Rio de Janeiro, aos 93 anos. A família confirmou a morte após dias de internação no Hospital Copa D'Or, onde uma infecção respiratória evoluiu para complicações renais. Ele passou os últimos dias em cuidados paliativos. Em nota, o hospital lamentou a perda e se solidarizou com parentes, amigos e leitores que cresceram rindo — e pensando — com seus desenhos.

Filho de funcionário do Banco do Brasil, Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe nasceu em 1932, ano bissexto, no Rio. Na infância, mudou-se para Juiz de Fora por recomendação médica, para aliviar crises de asma. Depois, a família seguiu para Santos, onde ele concluiu o ensino básico. Adolescente, voltou ao Rio por volta dos 15 anos, destino natural de quem acabaria mergulhando na vida cultural da cidade que, anos depois, ele dizia amar como um visitante permanente.

O primeiro passo profissional veio em 1952. Enquanto trabalhava no Banco do Brasil, conseguiu publicar um desenho na coluna de humor "Penúltima Hora", do jornal Última Hora (RJ). Logo em seguida, passou a colaborar com a seção de humor de Manchete, então uma vitrine nacional. O apelido que o consagraria surgiu ali perto: "Jaguar" foi sugestão do colega Borjalo, e o pseudônimo colou com a velocidade de um bom trocadilho.

O traço que o país aprendeu a reconhecer era seco, direto, um chute no ângulo dado com meia dúzia de linhas. A economia de tinta não significava economia de ideias. Ao contrário: o humor vinha do atrito entre a legenda enxuta e a imagem que falava o necessário — e o que não podia ser dito abertamente.

O Pasquim, a censura e a cidade que virou personagem

O Pasquim, a censura e a cidade que virou personagem

Em 1969, em plena ditadura, ele ajudou a fundar O Pasquim, ao lado de nomes como Tarso de Castro e Millôr Fernandes. Era um jornal de humor e crítica política que se tornou símbolo de resistência cultural. Em suas páginas nasceu o ratinho “Sig”, mascote que virou marca registrada daquele humor que fazia rir enquanto cutucava o regime. Não por acaso, vieram processos, interrogatórios e uma prisão. Ainda assim, a redação seguiu, semana após semana, criando brechas de liberdade no papel.

O Pasquim não foi só um produto do seu tempo; virou linguagem. Em meio a tesouras da censura, a equipe aprendeu a falar por metáforas, silêncios e ironias que o leitor decifrava em casa, no bar, no ônibus. A cada edição, uma negociação com o possível. Jaguadas — o apelido que colou nos seus desenhos — circulavam como comentários de bar impressos, com o peso de editorial e a leveza do deboche.

Fora das redações, o artista também era personagem. Boêmio confesso, gostava de contar que já encarou 50 latas de cerveja num único dia — uma bravata? Talvez. Mas ela diz muito sobre a persona que ele cultivou: íntimo de botequins, rodas de artistas e jornalistas. No Rio, ajudou a fundar a Banda de Ipanema, que nasceu de encontros de cronistas, desenhistas e músicos e cresceu até virar um dos blocos mais tradicionais do Carnaval. Foi visto morando em Lapa, Copacabana, Leblon — bairros que atravessaram seus desenhos como cenário e sotaque.

Apesar de carioca de nascimento, costumava brincar que não tinha “nada de carioca”. Dizia que curtia o Rio como quem chega e se apaixona toda vez, sem a obrigação do pertencimento. Essa distância afetiva talvez ajude a entender o olhar sempre espantado e mordaz com a cidade, a política, os costumes.

Ao longo de mais de sete décadas de produção, o cartunista publicou em diversos veículos e virou referência para quem veio depois. Sua escola era a do humor como leitura de mundo: histórias em um quadro, personagens que eram tipos sociais, e o famoso ratinho que apontava o óbvio que ninguém queria ver. A distinção não estava em contornos rebuscados, mas na ideia seca, certeira, que transformava notícia em sátira.

Com ele, a charge deixou de ser ilustração da realidade e passou a disputar o centro do debate. Quando o país mudou de chave — da repressão à abertura política, das diretas à Constituição e, depois, aos tropeços e repetições da nossa democracia —, ele continuou presente, adaptando o alvo sem mudar o estilo. O sistema político mudava de roupa; o humor seguia apontando o furo na camisa.

Também havia o lado editor e articulador. No convívio com colegas de ofício, Jaguar formou pontes, levou talentos para páginas e cadernos, defendeu que humor não é suplemento, é olhar. Muitos cartunistas, cronistas e jornalistas relatam ter descoberto no seu trabalho a prova de que é possível dizer o essencial com pouco — uma legenda, um balão, uma sobrancelha levantada.

O último adeus aconteceu nesta segunda-feira, 25 de agosto, no Memorial do Carmo, na zona norte do Rio. O velório foi realizado na capela celeste, das 12h às 15h, seguido de cremação. Artistas, jornalistas, leitores e figuras do meio político enviaram homenagens. As mensagens convergiam para um mesmo ponto: a perda de um criador que fez do riso uma forma de liberdade e da liberdade um compromisso diário.

Para quem acompanhou seu trabalho, fica a sensação de ter perdido alguém que era ao mesmo tempo cronista e cronômetro do país. Ele media o tempo político com piadas que não envelheciam no dia seguinte. E, se hoje o Brasil entende melhor a si mesmo quando se enxerga na caricatura, é porque houve, por décadas, um desenho insistindo que rir é também um jeito de pensar — e de não esquecer.